Os
esforços mundiais de controle e resistência ao avanço do corona vírus tem
estimulado e exigido que mais e mais pessoas se recolham as suas casas, o único
lugar aparentemente protegido contra os riscos da contaminação.
Estas
exigências, ao transferir parte da vivência cotidiana para os interiores das residências,
trabalhos, relações sociais e entretenimentos, tem deixadas expostas as deficiências
físicas, sensoriais, funcionais e simbólicas da casa brasileira, e revelam a extensão das desigualdades sociais e
urbanas.
De um
lado, ficam claras a profunda exclusão de grande parte da população da condição
mínima de moradia, dimensões compatíveis, infraestruturas e localizações
adequadas, e de outro lado, visíveis os equívocos formais, sensíveis e
materiais da produção capitalista imobiliária e de suas relações com o entorno natural
e as cidades.
As
desigualdades urbanas têm a sua origem na profunda diferença de rendas que
cliva a sociedade, impedindo aos setores mais pobres o acesso ao mercado
imobiliário, e e’ exponenciada pelos baixos investimentos públicos na produção
de imóveis e urbanizações de qualidade para esta população.
Os
setores médios e superiores, a algum tempo, têm alterado os perfis
demográficos, aumento da expectativa de vida, adiamento do casamento e da
maternidade, etc., observados nas metrópoles na oferta de imóveis e ambientes
urbanos projetados para a vida solitária ou famílias pequenas, adequados para
os novos perfis pessoais e comportamentos sociais.
Responde
esta oferta `as alterações dos grupos familiares, ao crescimento da proporção
de famílias dirigidas por mulheres e do número de jovens adultos vivendo nas
residências maternas, e no geral, uma redução significativa, identificada no
censo de 2010, do número de moradores por unidade habitacional.
A
imposição atual de um maior tempo de permanência e vivência diária nas casas ou
apartamentos, tem demonstrado ou sinalizado as seguintes inadequações ambientais,
simbólicas e funcionais;
1.
A forte segregação urbana imposta à população
pobre, nos locais de moradia e na mobilidade urbana, mas também, por decisão
própria, a setores da classe média, que passaram a se isolar nos condomínios
fechados.
2.
O acirramento dos comportamentos autoritários no
convívio familiar, da violência doméstica, principalmente contra as mulheres. A
casa tradicional, reduto feminino, torna-se local da disputa, onde os homens,
expulsos dos lugares tradicionais da sociabilidade masculina, nas ruas e bares,
passam a querer demarcar o seu poder e presença no espaço doméstico.
3.
O retorno do papel da cozinha como um centro de
compartilhamento dos afetos domésticos, na produção e consumo dos alimentos, em
comum, práticas que tinham sido reduzidas pelo crescente aumento da alimentação
fora de casa.
4.
As limitações para a instalação de ambientes
adequados ao home office, em residências onde não há privacidade suficiente
para o exercício do trabalho e estudo individual, bem como suportes físicos e
tecnológicos para estas atividades.
5.
Casas e apartamentos desenhados e construídos, nas
áreas metropolitanas, para o uso noturno ou de fim de semana, mostram-se insuficientes,
em dimensões e confortos corporais, inadequados em termos ambientais e pouco
estimulantes para atender o usufruto intenso e simultâneo de toda a família.
Algumas sintomas destas situações já podiam ser percebidas no
crescente interesse no reforma ou decoração dos interiores dos imóveis,
construídos em série, em condomínios e edifícios de apartamentos. Insatisfeitos
com uma estética insípida, layouts restritivos, estimulados ao consumo de móveis
e equipamentos domésticos, moradores de vários estratos de renda, passaram a
contratar profissionais e investir para (re)decorar e qualificar os seus espaços
domésticos.
A crise
atual da pandemia deve alterar a profundamente a vida pública, exigir novas
modulações nos projetos urbanos e na utilização dos ambientes coletivos, mas também
pode apresentar a oportunidade para pensar, propor e reconfigurar o espaço privado,
a partir, creio, das seguintes condições:
1.
A superposição de atividades de aprendizado, redes
sociais e trabalho aos usos correntes da habitação, da convivência afetiva e reprodução
da força de trabalho, vem somar a demanda do autonomia feminina no espaço privado
e urbano e das potencializações dos desejos e diversificação dos gostos nas
experiências individuais e grupais.
2.
A necessidade imperiosa de fornecer moradias e
urbanizações de qualidade a um conjunto imenso de cidadãos, acompanha, urgente
e necessária, à redução das desigualdades de renda. A produção, em escala, de habitações
e de suas infraestruturas, não se limita a uma questão técnica ou de
financiamento, exige participação dos moradores e um entendimento dos modos de
vida e práticas que se desenvolvem nos bairros populares, seus valores e exigências
particulares de sobrevivência, trabalho e lazer.
3.
E finalmente, a casa tem que ser entendida e
percebida, não mais simplesmente como o local do atraso, da reprodução de
comportamentos tradicionais ou hierárquicos, mas como um cenário da vida, onde
sob a pressão das transformações externas e internas, se movimenta, fervilha
uma grande e possível mudança de comportamentos privados, de inovadoras
relações de afetos, poderes e prazeres, onde as mulheres e os jovens tem um
papel central na suas invenções, subjetivações e gozos.
O desenhos e os projetos destas novas casas, de suas inserções
no meio natural e construído, de suas formas visíveis e potenciais, a serem reveladas
pelos usos múltiplos e singulares, ainda não existem e são desafios para uma
sociedade, seus técnicos e políticos, comprometidos para mundos e tempos melhores,
na vida privada e na vida pública.
Kleber Frizzera
Abril 2020
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