domingo, 26 de abril de 2020

Uma nova vida doméstica.



Os esforços mundiais de controle e resistência ao avanço do corona vírus tem estimulado e exigido que mais e mais pessoas se recolham as suas casas, o único lugar aparentemente protegido contra os riscos da contaminação.
Estas exigências, ao transferir parte da vivência cotidiana para os interiores das residências, trabalhos, relações sociais e entretenimentos, tem deixadas expostas as deficiências físicas, sensoriais, funcionais e simbólicas da casa brasileira, e revelam a extensão das desigualdades sociais e urbanas.
De um lado, ficam claras a profunda exclusão de grande parte da população da condição mínima de moradia, dimensões compatíveis, infraestruturas e localizações adequadas, e de outro lado, visíveis os equívocos formais, sensíveis e materiais da produção capitalista imobiliária e de suas relações com o entorno natural e as cidades.
As desigualdades urbanas têm a sua origem na profunda diferença de rendas que cliva a sociedade, impedindo aos setores mais pobres o acesso ao mercado imobiliário, e e’ exponenciada pelos baixos investimentos públicos na produção de imóveis e urbanizações de qualidade para esta população.
Os setores médios e superiores, a algum tempo, têm alterado os perfis demográficos, aumento da expectativa de vida, adiamento do casamento e da maternidade, etc., observados nas metrópoles na oferta de imóveis e ambientes urbanos projetados para a vida solitária ou famílias pequenas, adequados para os novos perfis pessoais e comportamentos sociais.
Responde esta oferta `as alterações dos grupos familiares, ao crescimento da proporção de famílias dirigidas por mulheres e do número de jovens adultos vivendo nas residências maternas, e no geral, uma redução significativa, identificada no censo de 2010, do número de moradores por unidade habitacional.
A imposição atual de um maior tempo de permanência e vivência diária nas casas ou apartamentos, tem demonstrado ou sinalizado as seguintes inadequações ambientais, simbólicas e funcionais;
1.    A forte segregação urbana imposta à população pobre, nos locais de moradia e na mobilidade urbana, mas também, por decisão própria, a setores da classe média, que passaram a se isolar nos condomínios fechados.
2.   O acirramento dos comportamentos autoritários no convívio familiar, da violência doméstica, principalmente contra as mulheres. A casa tradicional, reduto feminino, torna-se local da disputa, onde os homens, expulsos dos lugares tradicionais da sociabilidade masculina, nas ruas e bares, passam a querer demarcar o seu poder e presença no espaço doméstico.
3.   O retorno do papel da cozinha como um centro de compartilhamento dos afetos domésticos, na produção e consumo dos alimentos, em comum, práticas que tinham sido reduzidas pelo crescente aumento da alimentação fora de casa.
4.   As limitações para a instalação de ambientes adequados ao home office, em residências onde não há privacidade suficiente para o exercício do trabalho e estudo individual, bem como suportes físicos e tecnológicos para estas atividades.
5.    Casas e apartamentos desenhados e construídos, nas áreas metropolitanas, para o uso noturno ou de fim de semana, mostram-se insuficientes, em dimensões e confortos corporais, inadequados em termos ambientais e pouco estimulantes para atender o usufruto intenso e simultâneo de toda a família.

Algumas sintomas destas situações já podiam ser percebidas no crescente interesse no reforma ou decoração dos interiores dos imóveis, construídos em série, em condomínios e edifícios de apartamentos. Insatisfeitos com uma estética insípida, layouts restritivos, estimulados ao consumo de móveis e equipamentos domésticos, moradores de vários estratos de renda, passaram a contratar profissionais e investir para (re)decorar e qualificar os seus espaços domésticos.
A crise atual da pandemia deve alterar a profundamente a vida pública, exigir novas modulações nos projetos urbanos e na utilização dos ambientes coletivos, mas também pode apresentar a oportunidade para pensar, propor e reconfigurar o espaço privado, a partir, creio, das seguintes condições:
1.    A superposição de atividades de aprendizado, redes sociais e trabalho aos usos correntes da habitação, da convivência afetiva e reprodução da força de trabalho, vem somar a demanda do autonomia feminina no espaço privado e urbano e das potencializações dos desejos e diversificação dos gostos nas experiências individuais e grupais.
2.   A necessidade imperiosa de fornecer moradias e urbanizações de qualidade a um conjunto imenso de cidadãos, acompanha, urgente e necessária, à redução das desigualdades de renda. A produção, em escala, de habitações e de suas infraestruturas, não se limita a uma questão técnica ou de financiamento, exige participação dos moradores e um entendimento dos modos de vida e práticas que se desenvolvem nos bairros populares, seus valores e exigências particulares de sobrevivência, trabalho e lazer.
3.   E finalmente, a casa tem que ser entendida e percebida, não mais simplesmente como o local do atraso, da reprodução de comportamentos tradicionais ou hierárquicos, mas como um cenário da vida, onde sob a pressão das transformações externas e internas, se movimenta, fervilha uma grande e possível mudança de comportamentos privados, de inovadoras relações de afetos, poderes e prazeres, onde as mulheres e os jovens tem um papel central na suas invenções, subjetivações e gozos.

O desenhos e os projetos destas novas casas, de suas inserções no meio natural e construído, de suas formas visíveis e potenciais, a serem reveladas pelos usos múltiplos e singulares, ainda não existem e são desafios para uma sociedade, seus técnicos e políticos, comprometidos para mundos e tempos melhores, na vida privada e na vida pública.

Kleber Frizzera
Abril 2020

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