sábado, 4 de janeiro de 2020

feliz 2020


Viver em comum

A cidade ensinou-me infinitos temores:
Multidões, uma rua me sobressaltaram,
Uma ideia, outras vezes, flagrada num rosto.
Sinto ainda nos olhos a luz traiçoeira
Dos milhares de postes nas grandes calçadas.
Cesare Pavese

Quais dimensões, densidades habitacionais e de usos públicos devem ter as nossas cidades e metrópoles para que possam gerar um ambiente estimulante `a experiência e ao conhecimento humano, através dos contatos pessoais diretos, uma vida em comum, exercida cotidianamente na variedade de pessoas e eventos?
Segundo Georges Minois, em História da solidão e dos solitários, no mundo clássico latino : A solidão e’ a condenação, o exílio, o castigo, a morte. A vida e’ a cidade, a urbanitas, a multidão, o circo, as termas, o fórum, o senado, o teatro, o tribunal, o mercado, as orgias, as vistas, os templo. A vida pública, no ocidente, desde então, se fez, se realiza no compartilhamento político, cultural e social das cidades e dos seus equipamentos construídos, embora para Petrarca, devemos nos retirar para o mais longe possível das multidões e da agitação da cidade.
Em Fedro, Platão confessa outro entendimento: Amo aprender, como sabes. Ora, os campos e as arvores não aceitam me ensinar nada, enquanto e’ isto que fazem os homens que estão na cidade. Juntos e próximos, diante aos diferentes, segundo ele, temos as oportunidades de aprender em conjunto, acessando novas experiências, acontecimentos limites-que colocam em questão o ser do conhecido, do belo e do bom-, e se realizar plenamente através da incorporação do outro.
Para os que estimam os prazeres urbanos, e’ necessário que as urbs possuam habitantes em número, diversidade e em situação de mobilidade e proximidades tais para potencializar e (con)viver seus lugares dos conflitos e belezas, de visibilidade do estético e do trágico, nós de muitas trocas, encontros e desencontros.
Para Felix Guatarri, O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, ... máquinas portadoras de universos incorporais ...que podem trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularizacao liberadora da subjetividade individual e coletiva.
Há uma intensa ambiguidade neste desejo humano de busca de sensações e acúmulos de sentidos. Amamos nos perder na multidão, assustadora de um lado, atraente e misteriosa de outro, admirando anônimos passantes, mas também recuamos, inseguros, diante da massa urbana impessoal, de mil caras e falas ruidosas. Para aprender a complexidade do mundo e’ exigência estarmos em companhia, corpos e mentes atentos, enfrentar a presença das múltiplas faces, curiosos diante das frestas, cortes materiais e simbólicos, onde se instalaram as marcas dos passados e dos anúncios de imprevistos futuros.
No entanto, são poderosos os instrumentos virtuais de captura de dados pessoais, que processam nossos movimentos e desejos, e instalados em aplicativos e algoritmos, manipulam prazeres e emoções.
Nas metrópoles, movendo-se por entre a rugosidade das construções e dos corpos, expondo nossos sentidos aos olhares e aos gostos vizinhos, à impressão direta das imagens e da multidão, poderemos ultrapassar o mundo virtual que congela, reduz, simplifica?
Conseguiremos superar as máquinas de poder, dotadas de crescentes inteligências artificiais, que antecipam `a distância vontades pessoais e assumem o controle dos fatos, determinando as ações futuras e as próprias resistências libertadoras?
Quantos olhares singulares enfrentar e aceitar para se aproximar do fundo escuro das coisas, ao segredo dos sofrimentos e alegrias, para sermos melhores, compassivos e demasiadamente humanos?

Quando tudo e´ publico, visível,
quando tudo e´ transparente, ruidoso, exposto, acelerado,
o segredo ama o silêncio.
Publicado em Movimentoonline.com.br
Kleber Frizzera
Dezembro 2019