sábado, 31 de agosto de 2019

Andando

Andando
E´ preciso arrancar alegria ao futuro.
Maiakovski

Perder-se em uma cidade é uma forma amorosa de conhecimento, um conhecimento ambulante, uma maneira doce de se aproximar de suas complexidades, de suas diferenças, identidades, deixando-se levar pela curiosidade, pelo acaso, pelos contatos surpreendentes com os pequenos acontecimentos e com as estranhas marcas inscritas no chão e nas paredes.
Quando andamos não o fazemos apenas para chegar a um destino, diz o escritor português Afonso Cruz, e nossa caminhada não se mede pela distância, mas sim pelo modo como a paisagem nos comoveu. Pode não ter razão, objetivo, destino, utilidade e é exatamente aí que reside a riqueza do passeio
Isto só é possível se mergulharmos nas cidades de forma lenta, deixando-nos atrair por leves indícios, atentos aos pequenos sons, ruídos e falas que extravasam das janelas entreabertas no calor dos dias. Cantos atraem marinheiros de terra firme, que se deixam levar, encantados, ´a ruas e escadarias sem fins, e logo afastam, ao longe, os barulhos da cidade enlouquecida. 
`A noite, no escuro, espectros deslocam-se de seus esconderijos, revelam, em silencio, os seus segredos temporais ao flaneurcaminhante, ao amigo das sombras e dos mistérios.
Caminhando, experimentamos múltiplas sensações, seja numa peregrinaçao  longa, um estímulo a contemplação da natureza ou curta, um contato com o bairro, quando vamos a padaria. Andando, cheiros anunciam almoços e jantares, o sabor de cana e do pastel, distorções e reflexos desafiam as razoes iluministas, divergem os entendimentos dos olhares,sensíveis tatos importam prazeres, ao gozo, a cada ladeira e paralelepípedo palmilhado.
Não temos mais tempo para tais distrações, submetidos à tirania da velocidade, da pressa, do tempo encurtado. Acelerados, o Wazenos informa a rota mais rápida, de carro, ônibus, bicicleta. A pé, apenas para aqueles que seguem devagar, desacelerados pelo desemprego, desalento, velhice ou aposentadoria, que ocupam os tempos mortos dos bairros e da cidade. E também para crianças e estudantes, que na volta das aulas, apoiam suas brincadeiras nos muros e meio- fios, sem pressa para as conquistas vãs.
Neste mundo contemporâneo, o que importa é a velocidade dos bens e das pessoas. Os “encontros” se resumem a experiências onlinena impessoalidade vivida nos intervalos dos percursos, sem mais abertura para os sentidos e as sensações nos deslocamentos.
Caminhar passou a ser apenas um atributo de saúde, um exercício obrigatório, uma corrida rápida, capaz de prover disposição ao corpo e o espírito, aos domingos e feriados.
O movimento corporal no espaço, diz YI-fu Tuan, precisa se repetir para aprender a navegar, e’ preciso, confirma o poeta, navegar estabelecendo marcos de orientação, em um movimento intrigante da experiência da escala humana, que se da’ no enfrentamento sensível das resistências, como nos labirintos.
Isso mais se torna estranho que nas novas obras e projetos, Av. Leitão da Silva e nos desenhos propostos para a Avenida Vitoria, inóspitas e agressivas, os locais para os pedestres sejam desqualificados, sem árvores, sem dimensões suficientes para uma experiência simbólica, que nos faça, lentamente, apreciar e reconhecer as coisas e as pessoas com quem partilhamos um tempo comum no mundo.
Ps. Os corpos se apresentam, tornam visíveis as suas particularidades e desejos, quando, verticais, se movem e se apresentam na ruas e calçadas.

Kleber Frizzera
Agosto 2019

sábado, 17 de agosto de 2019

Mobilidade na Metrópole


O Governo do Estado anunciou recentemente um investimento de R$ 100 milhões para ampliar a capacidade viária da Terceira Ponte, com a implantação de uma ciclovia e mais duas faixas para a movimentação de veículos.
São evidentes as dificuldades diárias do deslocamento de bens e pessoas entre as cidades de Vitória e Vila Velha. Também são crescentes os custos sociais e o desgaste pessoal dos milhares de trabalhadores e estudantes que fazem este percurso todo o dia. Mas investir no transporte individual será a melhor opção?
As grande cidades e da mesma forma a Grande Vitória estão passando e irão passar por grandes mudanças na mobilidade urbana, causadas, principalmente, pelas alterações dos regimes de trabalho e do acesso virtual aos serviços públicos e privados.
O trabalho em casa, desenvolvido em horários flexíveis, em múltiplos pontos urbanos, e a prática das compras, contatos, ou entretenimento via internet estão, em todo o mundo, modificando hábitos tradicionais. A isto se agregam as mudanças das composições familiares, mais diversas e menores, inclusive com a expansão da crescente vida solitária de jovens e idosos.
Sintomas dessas condições estão presentes no aumento do deslocamento por demanda, através do uso intensivo de aplicativos de aluguel de carros, bicicletas e patinetes. 
O carro individual, na ausência de um sistema da transporte público eficaz e flexível, passou a ser a alternativa das classes médias ou mesmo remediadas, enquanto os mais abastados, podem optar por morar junto aos seus locais de trabalho, comércio e entretenimento.
Estes novos modos de deslocamentos, somados à dispersão das moradias e locais de trabalho, têm impactado na redução do número de passageiros no sistema de transporte coletivo, ainda hoje, na Grande Vitória, limitado apenas aos ônibus, desconfortáveis e pouco flexíveis diante destas transformações. 
Em resumo, a mobilidade metropolitana tende a se desconcentrar dos horários pico e buscar se adaptar às novas exigências do trabalho, cada vez mais precário e provisório e à oferta, cada vez mais dispersa e longínqua dos imóveis de custos acessíveis.
Quais são as alternativas?
Sem dúvida, prioritário é dar continuidade a um processo de planejamento metropolitano, a partir de um documento produzido pelo Instituto Jones Santos Neves (IJSN), que possa articular as ações do estado e dos municípios. 
A médio e longo prazo, com a redução dos índices de crescimento demográfico, poder-se-á pensar em contrair e adensar a metrópole e, reduzir custos e tempos de transporte-estimulando osdeslocamentos não mecanizados-, facilitando os contatos interpessoais e democratizando os acessos aos bens públicos..
Mas a curto prazo, é recomendável utilizar de forma mais adequada a superestrutura da terceira ponte, quem sabe aproveitando uma quinta faixa - já existente- para a implantação de um sistema de transporte – possivelmente um VLT -, mais confortável e ambientalmente responsável. Ao ligar a área-central de Vila Velha à Praia do Canto e Enseada do Suá, este poderá oferecer aos seus moradores, um mais eficiente modo de se deslocar, viver e usufruir a cidade.
Ps 
A transformação da Ceturb em uma companhia metropolitana com a participação dos municípios e usuários pode ser uma boa ideia para unificar e racionalizar a gestão do trânsito, do sistema viário metropolitano, dos transportes públicos, inclusive táxis, aplicativos e assemelhados.
Querem um exemplo. New York.

Kleber Frizzera
Agosto 2019 

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Tempos difíceis.2


Vivemos tempos difíceis, desafiadores, talvez desesperançosos. 
Vivemos um mundo de profundas manifestações de ódios e violências, um mundo de grandes misérias, ocupado por agressivos preconceitos culturais, de gênero, de sexo e cor, um mundo de desigualdades sociais, regionais e econômicas, onde as muitas narrativas, projetos políticos e opções de comportamentos individuais e coletivos confundem e dificultam as compreensões e escolhas pessoais.
Neste tempo, novas tecnologias stão transformando as vidas comuns, impactando cada vez mais a natureza e o construído, gerando tragédias globais no meio ambiente, assustando com o acesso, controle e manipulação das informações privadas e dos dados mais íntimos, e apontando um momento onde cyborgs e robots poderão estar substituindo, em muitas tarefas, os seres humanos, tornados, em sua maioria, pessoas inúteis e irrelevantes, vivendo de precários, temporários e alienados trabalhos e empregos.
No interior das casas, as famílias tradicionais se dissolvem, compondo novas ordens, editando arranjos diversos, de afetos, valores e sexualidades, um mundo privado mais livre e inventivo, mas também de rusgas e confrontos, de violência contra as mulheres e os homossexuais, que ampliam os dissensos e as discórdias.
A virtualidade esta' sequestrando as relações sociais pessoais, afastando as pessoas do convívio dos lugares públicos das cidades e ambientes julgados agressivos, a viver em comunidades fragmentadas, condomínios murados, opondo em desconfiança e rancor, aos outros, vizinhos tornados inimigos, e apenas aproximando, nas redes sociais, os mais semelhantes ou iguais, agrupados em bolhas homogêneas.
Neste mundo tão diverso, entre a globalização e o localismo, nos conflitos entre uma terra sem fronteiras e os grossos muros da separação real ou virtual, em dúvidas entre as verdades e as mentiras, qual serão o papel das edificações e das cidades no século XXI?
O mais importante arquiteto vivo brasileiro, Paulo Mendes da Rocha, nos propõem, ´a contemporaneidade, um conjunto de tarefas para os cidadãos e urbanistas.
A primeira, a mais sensível, e´ pensar, projetar, produzir e viver uma cidade, que ampare, proteja e cuide dos homens e das mulheres. Mas principalmente, cuide dos mais fracos, dos que sofrem injustiças, preconceitos e violências, daqueles e daquelas, que submetidas as imparciais e abstratas regras da vida económica, tornaram-se irrelevantes, inúteis, aqueles que vivem em precárias habitações e que são excluídos da vida publica urbana. Os pobres, negros, as mulheres, as crianças e os velhos, os homossexuais. Os sem teto. 
Mas Paulo Mendes, também nos convoca a assumir a herança histórica da arquitetura e das cidades, das suas técnicas, de suas qualidades estéticas, culturais e humanas, de suas estimulantes experiências espaciais, a se somarem aos conhecimentos científicos e tecnológicos atuais, para fazer e prover os edifícios e os lugares urbanos, das condições objetivas para uma vida digna, igualitária, alegre e feliz. 
E finalmente, nos convoca a devolver às cidades as suas condições democráticas, fazendo melhores os seus espaços públicos, de convivência social, política e cultural, no´s onde as falas, os argumentos, os discursos e as práticas das diversidades possam conviver, debater as suas diferenças e decidir os nossos futuros, de forma democrática.
Uma cidade que instale o comum, que permita gerar novos nomes, práticas e lugares, ocupar as falas que “ trarão `a vida o mundo desconhecido que esta’ a nossa espera, porque esperamos por ele
O sucesso destas tarefas, hoje, se encontram, em boa parte nas mãos das mulheres, que no século XXI, creio, com a sensibilidade, a generosidade e solidariedade, a disciplina e o desejo serão capazes e tem as plenas condições para o seu cumprimento.
Que brilhe os olhos do tigre entre as ruinas abandonadas.

Kleber Frizzera
Agosto 2019