Gianozzo:
Há três coisas que o homem pode dizer que lhe pertencem propriamente: a
fortuna, o corpo...
Lionardo:
– E qual seria a terceira?
Gianozzo:
– Ah! Uma coisa extremamente preciosa. Essas mãos e esses olhos não são meus
como ela.
Lionardo:
– Maravilha! E o que é?
Gianozzo:
– O tempo, meu caro Lionardo, o tempo, meus filhos.
Leon Battista Alberti.
Seculo
XV
Uma
das lutas centrais e que fez parte das conquistas principais dos trabalhadores
no século XX, foi pela limitação diária de 8 horas de trabalho, uma luta histórica
que tem enfrentado desde o fim da Idade Média, a ordem, o ritmo e o controle disciplinar
do tempo e do cotidiano humano, impostos pelo capitalismo.
A
regulamentação da cadência e do encadeamento do esforço urbano, diz Jacques Le
Goff, “e’ uma das principais necessidades que, no século XIV, impulsionaram
a sociedade a modificar a medida do tempo, quer dizer, o próprio tempo: a necessidade
de se adaptar à evolução econômica.” De uma economia rural, dominada pelos
ritmos agrários, sem pressa, sem rigor ou exatidão, pouco capaz da medição dos
esforços quantitativos, definidos pelos regimes do solo e do calendário natural,
pela rotina “do levantar-se ao por do sol”, a Europa, no Renascimento,
caminhou para um mundo urbano, o mundo das horas certas, do tic tac
do relógio mecânico.
Para
Le Goff, este século do relógio e’ o momento da produção expandida do regime
disciplinar dos corpos, da apropriação da riqueza e dominação do estado e dos proprietários,
mas e’ também “aquele do canháo e da profundidade do campo visual. Tempo e
espaço transformam-se igualmente para o erudito e mercador.”
A
transição moderna para a revolução fabril industrial criou, segundo E.
P. Thompson, “uma nova percepção do tempo, ditada pela precisão, pelas
unidades do relógio e divididas as jornadas diárias em períodos de produção e
reprodução”. O século XIX, com a expansão das indústrias nos países
centrais e a manutenção da escravidão, no Brasil, ate’ praticamente o final do
período, assistiu uma universalização das formas de controle dos tempos e das
rotinas dos esforços humanos, inclusive com a incorporação de jovens e crianças
aos processos produtivos.
Para
Antônio Negri, em Assembly, agora, uma outra concepção do tempo
emerge do interior da fase atual, quando somos progressivamente todos exortados
a elevarmos a nossa “produtividade em todos os momentos de nossas
vidas.”, e progressivamente, nas palavras de Jonhatan Crary, somos todos “destituídos
do tempo”.
Há
alguns anos, vários autores têm descrito estas fortes alterações dos regimes dos
tempos e ritmos do trabalho e seus impactos sobre a vida cotidiana, pública e
privada, e consequentemente sobre a experiência coletiva dos espaços urbanos.
O
livro de Jonathan Crary, Capitalismo tardio e os fins de sono, publicado
em 2015, pode se visto como um alerta, uma antecipação `as condições impostas ,
hoje, pela quarentena do Coronavirus. Afastados dos lugares partilhados de
trabalho, do lazer e de ensino/ aprendizagem, muitos de nós, somos restritos ao
confinamento doméstico e obrigados ao regime do home office, onde, “sem
o espaço e o tempo da privacidade, longe da luz implacável e crua da constante
presença do outros no mundo, não se pode alimentar a singularidade do eu”, uma
restrição, que remete, depois do seu uso, devolve o usuário/ consumidor `a sua
solidão privada.
A
experiência urbana, pública, diversa, múltipla e compartilhada, alerta Crary,
esta’ se atrofiando, e assistimos a uma crescente redução e alteração das
capacidades mentais, sensoriais e perceptivas, e entre o tempo humano e as temporalidades
do sistema das redes, um conjunto de “ disjunções, fraturas e desequilíbrios
compõem a experiência real destas relações”.
Atualmente,
tornados inúteis ou descartáveis, imensos contingentes de desempregados ou trabalhadores
em home office, desenvolvem, em horários expandidos/ ilimitados, sem
noite, sem sonhos, atividades precárias, instáveis, temporárias, submetidos ao
ritmo incessante de 24/7, vinte e quatro horas, sete dias por semana,
sequestrados, o tempo e o espaço, individual e social, pelos poderes e interesses
econômicos.
Exilados
das nossas cidades, sequestrados das temporalidades naturais e do usufruto dos
lugares comuns, quais os caminhos humanos, na pós pandemia, para voltarmos,
retornarmos ao mundo público e à invenção da história, e diante da constante presença
real e corporal do outros, “depois de repetidas negações e repressões”, enfrentarmos
os riscos da liberdade e da felicidade?
Kleber
Frizzera/ abril 2020
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