sábado, 11 de abril de 2020

O sequestro do tempo e ( do espaço)


Gianozzo: Há três coisas que o homem pode dizer que lhe pertencem propriamente: a fortuna, o corpo...
Lionardo: – E qual seria a terceira?
Gianozzo: – Ah! Uma coisa extremamente preciosa. Essas mãos e esses olhos não são meus como ela.
Lionardo: – Maravilha! E o que é?
Gianozzo: – O tempo, meu caro Lionardo, o tempo, meus filhos.
Leon Battista Alberti.
Seculo XV

Uma das lutas centrais e que fez parte das conquistas principais dos trabalhadores no século XX, foi pela limitação diária de 8 horas de trabalho, uma luta histórica que tem enfrentado desde o fim da Idade Média, a ordem, o ritmo e o controle disciplinar do tempo e do cotidiano humano, impostos pelo capitalismo.
A regulamentação da cadência e do encadeamento do esforço urbano, diz Jacques Le Goff, “e’ uma das principais necessidades que, no século XIV, impulsionaram a sociedade a modificar a medida do tempo, quer dizer, o próprio tempo: a necessidade de se adaptar à evolução econômica.” De uma economia rural, dominada pelos ritmos agrários, sem pressa, sem rigor ou exatidão, pouco capaz da medição dos esforços quantitativos, definidos pelos regimes do solo e do calendário natural, pela rotina “do levantar-se ao por do sol”, a Europa, no Renascimento, caminhou para um mundo urbano, o mundo das horas certas, do tic tac do relógio mecânico.
Para Le Goff, este século do relógio e’ o momento da produção expandida do regime disciplinar dos corpos, da apropriação da riqueza e dominação do estado e dos proprietários, mas e’ também “aquele do canháo e da profundidade do campo visual. Tempo e espaço transformam-se igualmente para o erudito e mercador.”
A transição moderna para a revolução fabril industrial criou, segundo E. P. Thompson, “uma nova percepção do tempo, ditada pela precisão, pelas unidades do relógio e divididas as jornadas diárias em períodos de produção e reprodução”. O século XIX, com a expansão das indústrias nos países centrais e a manutenção da escravidão, no Brasil, ate’ praticamente o final do período, assistiu uma universalização das formas de controle dos tempos e das rotinas dos esforços humanos, inclusive com a incorporação de jovens e crianças aos processos produtivos.
Para Antônio Negri, em Assembly, agora, uma outra concepção do tempo emerge do interior da fase atual, quando somos progressivamente todos exortados a elevarmos a nossa “produtividade em todos os momentos de nossas vidas.”, e progressivamente, nas palavras de Jonhatan Crary, somos todos “destituídos do tempo”.
Há alguns anos, vários autores têm descrito estas fortes alterações dos regimes dos tempos e ritmos do trabalho e seus impactos sobre a vida cotidiana, pública e privada, e consequentemente sobre a experiência coletiva dos espaços urbanos.
O livro de Jonathan Crary, Capitalismo tardio e os fins de sono, publicado em 2015, pode se visto como um alerta, uma antecipação `as condições impostas , hoje, pela quarentena do Coronavirus. Afastados dos lugares partilhados de trabalho, do lazer e de ensino/ aprendizagem, muitos de nós, somos restritos ao confinamento doméstico e obrigados ao regime do home office, onde, “sem o espaço e o tempo da privacidade, longe da luz implacável e crua da constante presença do outros no mundo, não se pode alimentar a singularidade do eu”, uma restrição, que remete, depois do seu uso, devolve o usuário/ consumidor `a sua solidão privada.
A experiência urbana, pública, diversa, múltipla e compartilhada, alerta Crary, esta’ se atrofiando, e assistimos a uma crescente redução e alteração das capacidades mentais, sensoriais e perceptivas, e entre o tempo humano e as temporalidades do sistema das redes, um conjunto de “ disjunções, fraturas e desequilíbrios compõem a experiência real destas relações”.
Atualmente, tornados inúteis ou descartáveis, imensos contingentes de desempregados ou trabalhadores em home office, desenvolvem, em horários expandidos/ ilimitados, sem noite, sem sonhos, atividades precárias, instáveis, temporárias, submetidos ao ritmo incessante de 24/7, vinte e quatro horas, sete dias por semana, sequestrados, o tempo e o espaço, individual e social, pelos poderes e interesses econômicos.
Exilados das nossas cidades, sequestrados das temporalidades naturais e do usufruto dos lugares comuns, quais os caminhos humanos, na pós pandemia, para voltarmos, retornarmos ao mundo público e à invenção da história, e diante da constante presença real e corporal do outros, “depois de repetidas negações e repressões”, enfrentarmos os riscos da liberdade e da felicidade?

Kleber Frizzera/ abril 2020

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