sexta-feira, 12 de junho de 2020

Juntos


Anotações para um possível futuro

 

O centro encarna um espaço comum a todos, socialmente controlado, em que a opinião de cada um, livremente expressa pela palavra no decorrer de um debate geral, e´ posta a disposição de todos..

Surge assim o político, ...E para que seja impossível apropriar -se do poder, coloca-se este no centro.

Espaço e cidade

Jean Pierre Vernant,

 

A pandemia nos apresentou, de surpresa, um futuro imprevisto, de riscos que assustam, ameaçam, que rompem o fato comum e afastam o próximo, tornam distantes os afetos e as amizades, mas estimulam possibilidades do surgimento do novo.

Os ritos públicos, do trabalho, do ensino, das compras, dos extraordinários gostos das festas e entretenimentos, se retraem, contidas as multidões, encapsuladas no campo privado, e tornam virtuais os contatos e as tensas figurações.

Quando voltaremos a estarmos juntos?

Sobreviver a estes desfazimentos incontrolados da vida anterior, dita normal, e pensar em comum o futuro?

Desfeitos os centros históricos, explodidos em múltiplos pontos deslocados pelos territórios metropolitanos, desconexos, fragmentos espaço- temporais que monopolizam alguns usos e segregam as diversidades sociais e culturais, haverá a possibilidade da constituição de uma rede metropolitana que conecte as suas particularidades locais e somem potencialidades isoladas?

Proximidade e distanciamento.

Uma dos impactos da pandemia atual, na experiência urbana, e’ o isolamento social, o controle de gestos diante dos outros, nas aglomerações, nas ruas e ambientes coletivos, afastando-nos dos desconhecidos, e acelerando desconfianças de contatos diretos com amigos e entes queridos.

E’ previsível a redução das festas, shows e espetáculos, onde a concentração e a densidade de pessoas fazem parte dos prazeres dos seus usufrutos, transferidos, em boa parte, para o consumo virtual, de imagens, sons e partilhamentos.

Uma possível expansão dos preconceitos, aos diferentes, `as suas presenças e comportamentos, fortalece, no plano ambiental, bolhas espaciais urbanas, habitadas por grupos homogêneos, semelhantes nos aspectos sociais, culturais e políticos. Estes procedimentos isolacionistas, generalizados no mundo virtual, deverão se espalhar ao mundo concreto, reforçando as crescentes segregações, consolidando um mundo e uma metrópole, feitos de muitas e desconexas partes, aparentemente impossíveis de se agregarem em um sistema comum.

 

Quais serão nestes próximos tempos, os espaços da esperança ?

Corpos e espaços vividos, moldados socialmente, são instrumentos de expressão e manutenção de uma ordem econômica e política, ou podem fornecer disposições à novas práticas livres e autônomas, diante dos choques e das adversidades.

Mas quais as condições concretas para o fornecimento destas disposições?

Poderão as nossas cidades, estratificadas em exclusões físicas e humanas, serem o campo de novos sentidos e modos de vida coletivos, desfrutados em inovadores ordenamentos formais e suportes `as cotidianas necessidades?

Voltemos `a posição crítica dos centros urbanos.

Lugares da palavra e do debate, voltarão a abrigar usos e atividades coletivas, recuperando o papel democrático, locais das disputas e conflitos, locus dos debates e das trocas dos afetos?

Imaginemos duas alternativas.

 

Hipótese 1 Uma rede de centros, diferentes e equivalentes

Nesta alternativa, em um quebra cabeças, um puzzle, remontaremos as peças urbanas desfeitas e lançadas pelo território metropolitano, configurando novas e surpreendentes imagens, a partir de pontos de conexão atuais e ainda incompletos.

A partir da constituição desta potente rede de muitos centros, articulada por múltiplas interligações de pessoas, bens e informações, intempestivas invenções se movimentarão e impulsionarão as produções individuais e coletivas de uma economia local e solidária, de distribuição igualitária.

 

Hipótese 2  Um outro centro/ híbrido

Em uma outra saída, de olho e paixão aos centros históricos atuais, atentos as suas ruínas e seus espectros, iremos reinventá-los, extraindo sentidos e gozos de suas marcas, falas e alusões, das conquistas e decepções anteriores. A compreensão crítica dos eventos passados registrados em edifícios, lugares e práticas, ao reconhecer as perdas e projetos incompletos, poderá fornecer e iluminar ações, gestos, movimentos, revoluções futuras.

Sobre os registros dos anteriores desejos humanos poderemos erguer outros riscos, resignificar velhas construções e escondidos adornos, exercer novos ofícios e partilhar novos amores e sonhos.

 

Exigências mínimas para gerar novas centralidades, condições, físicas e políticas e simbólicas, são preliminares e necessárias a estes esforços:

1.Dotar a metrópole/cidade de um sistema público de mobilidade de pessoas/da circulação de seus desejos e seus corpos, que forneça direitos aos bens comuns e serviços públicos, que amplie a trocas de informações e o acesso aos dados públicos e pessoais.

2. Romper a lógica perversa das desigualdades sociais e econômicas, oferecendo renda universal e acesso universal ao trabalho, saúde, educação e entretenimento a todos os cidadãos.

3. Assumir um compromisso planetário em defesa do meio ambiente, na luta contra o aquecimento global, na direção de uma economia, que preserve os recursos naturais e se realize na criação, produção e consumo responsável e distributivo.

 

Kleber Frizzera

Junho 2020

Publicado em movimentoonline.com.br

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Havia

Naquele tempo não se distinguiam estações, ... 

E mesmo os trovões, os relâmpagos, a chuva, o gelo e o granizo não seguiam o seu curso.

Havia muitos pássaros e caça, mas não havia quem os caçasse.

Havia o que chamamos demônios, mas não podiam opor-se a nada.

Naquele tempo, a felicidade existia, mas não havia ninguém para distingui-la.


in Histo'ria e memo'ria, Jacques le Goff