quarta-feira, 27 de maio de 2020

Horas vazias

 

Horas vazias

O extraordinário do cotidiano e’ superar o próprio cotidiano

Henri Lebfreve

 

Impostos, pela quarentena, ao cotidiano mais comum, igual, repetido, desfeitas as distrações dos movimentos inúteis do dia a dia, da circulação apressada, sem sentido, do ilusório consumo das coisas e dos lugares, frente ao compulsório recorte de nossa casa, assombra-nos, como um fantasma, a profunda banalidade da vida.

Comer, assistir tv, dormir, ...

No dia a dia, o mesmo tempero, a mesma verdura, o mesmo almoço requentado, a mesma pizza pelo telefone, que nos recordam, em ausência, os profundos gostos e sabores da mesa materna, dos cheiros das comidas no calor do fogão de lenha e o suave toque dos cotovelos assentados sobre a lisa mesa de madeira.

Nas telas, a Netflix repete em sequência uma mesma história, em um streaming infinito, com idênticos roteiros de perdas e reconciliações, anuncia uma sequência de séries, de assassinatos, de crimes e punições, de zumbis e amores românticos, de guerras e heróis, repete, na maioria dos filmes, um mesmo fim, feliz.

Nas leitos, o colchão não contém, macio, o mesmo prazer anterior dos acanhados minutos roubados da rotina e do trabalho, o despertador não cobra mais insistente, o esforço de levantar-se apressado, e sobra, `a consciência desperta, um maior número de horas a serem preenchidas, livres, vazias.

Assustados, afastamo-nos, diante do olhar da tela, que não nos reconhece, na ausência dos ruídos da multidão, das presenças das ruas, da ressonância da convivência nas lojas, nas escolas e nos bares.

Contemplamos, preocupados, como a comunicação digital esta’ debilitando o vínculo comunitário, desfazendo o saber corporal e desvanecendo uma memória e uma identidade corpórea, individuais e comuns, que consolidaram práticas, rituais e encenações coletivas.

Mas, o isolamento social está estimulando inusitados pequenos prazeres da vida doméstica, quando o espelho duplica os mesmos lugares, repete conhecidas imagens, e nos ensina, ao ritmo solar de cada dia, outros gestos, mais lentos, apurados, elaborados. Gestos de pequenos afazeres comuns, da limpeza da casa, da feitura da comida, da leitura solitária, do desenho do bordado sem fim, que aguarda o retorno de Ulisses. Gestos silenciosos de afetos e carinhos.

Encerrados em nossa casa, fustigamos outros gostos e interesses, que provocam o desfrute dos prazeres de uma vida cotidiana, o reconhecimento dos sentidos no discreto, no insipido, no banal, quando, escreve Byung-Chul Han, em seu novo recente livro La desaparición de los rituales: Una topología del presente:La repetición descubre una intensidad en lo no excitante, en lo discreto, en lo insípido, faz habitável o tempo, nos permite celebrar o tempo e viver a experiência profunda do simbólico.

Para quem espera sempre o novo, estimulado pelas informações  acumuladas da economia neoliberal, que elimina a duração das emoções, para ampliar o consumo, por cima do que já existe, “El sentido, es decir, el camino, es repetible,..... aunque al mismo tiempo algo me ha dado una alegría al entrarme por el rabillo del ojo (la luz del día o el crepúsculo).

Incluso una puesta de sol es un acontecimiento y, por tal, irrepetible.”, a ser admirado, novidade, em cada fim de tarde.

Para Han, o capitalismo não gosta da calma, tenta impor, aos corpos e aos espíritos, o ritmo acelerado do trabalho alienado, acelera a comunicação digital e o home office, onde não há mais repouso, onde não há mais sossego, onde não há mais intervalos, onde não há’ mais silêncios. Pressionados incessantemente a produzir, a “vida fica totalmente degradada, profanada”.

Na pós pandemia será’ urgente preciso renovar os tempos da festa, da celebração do sublime, o tempo da poesia, diz Franco Berardi, como “ o ato de fazer experiência com o mundo pelo embaralhamento dos padrões semióticos”, que pode mostrar um espaço de sentido que não preexiste na natureza, e que não tendo como fundamento a convenção social, vai além dos limites da linguagem, e “revela uma esfera possível de uma experiência ainda não experimentada”.

Haverá’, para gozo e admiração, uma poesia urbana, de ventos e coisas, palavras e acontecimentos, capaz de revelar indizíveis significados e unir esforços híbridos, em nossas casas e na vida pública das cidades?

 

Kleber Frizzera

Maio 2020

 

Publicado em Movimentoonlin.com.br

sábado, 9 de maio de 2020

Um erro


O projeto Portal do Príncipe
Se em dezembro/ 2019, o projeto do Portal do Príncipe, proposto pelo Governo do Estado para a entrada sul de Vitória, vinculado a uma visão rodoviarista, já’ se mostrava inadequado para as exigências urbanas e especificamente para o local de sua implantação, após a pandemia do corona vírus, a proposta se mostra como um equivoco muito maior.
Pensadores de todo o mundo, políticos, urbanistas e arquitetos, tem refletido sobre o futuro das cidades, alertando sobre as novas condições e práticas urbanas, em um mundo pós pandemia, e apontando algumas  tendências:
1. A pandemia expôs uma crescente desigualdade urbana, de rendas, empregos e condições de trabalho, e principalmente, denunciou as deficientes condições físicas e ambientais das moradias populares- sem falar dos moradores de rua-, e seus impactos diretos na contaminação e disseminação do vírus. Ao mesmo tempo, cresce o entendimento e a consciência da responsabilidade pública na condução de políticas habitacionais inclusivas, com a reabilitação de imóveis fechados, subutilizados ou abandonados nas áreas urbanas.
2. Não há’ mais dúvidas que o trabalho e o ensino em regime de home office, bem como compras online, tendem a crescer exponencialmente, afetando as movimentações diárias, e, reduzindo o número de viagens dedicadas a estas tarefas, trabalho, ensino e compras. O regime do trabalho 24/7- 24 horas, sete dias da semana-, já e’ crescente, a algum tempo, nas grandes metrópoles, alterando os números, os objetivos e as horas pico dos deslocamentos diários e estas rotinas de mobilidade devem se acelerar também nas metrópoles menores.
3. Muito provavelmente, haverá’ uma reconfiguração das atividades econômicas, a redução da globalização da economia, do comércio exterior, um processo de reindustrializacao local e um esforço para reduzir as dependências nacionais do mercado internacional. A Grande Vitória, fatalmente, será afetada pela diminuição do volume e valores das commodities, e devera’ se esforçar para que novos empreendimentos, tecnológicos ou intensivos de mão de obra, produtores de bens e serviços pessoais e empresariais, materiais e imateriais, compensem e substituam estas perdas futuras de rendas públicas e privadas.
Diante destas três, prováveis possibilidades, as cidades precisam e devem reestruturar, ambiental, econômica e socialmente, a produção, -inclusive através do trabalho colaborativo-, o consumo consciente dos bens e serviços, a mobilidade diária, as práticas de vida cotidiana, privada e pública e a oferta de habitações e ambientes urbanos dignos a todos os seus moradores.
O projeto Portal do Príncipe, conforme divulgado na sua contratação, não atende a nenhuma destas demandas, ao contrário, o projeto :
Prioriza o veículo individual como meio principal de locomoção em detrimento do transporte coletivo, segmenta a cidade e separa os bairros, não preserva e não propõem espaços para a habitação e atividades produtivas e contribui para a desqualificao ambiental e estética da região.
Isto e’, um projeto inútil, pouco atento e comprometido  com o futuro e novas exigências para a metrópole.
Reitero minhas críticas anteriores ao projeto, publicadas em Movimentoonline.com.br, dezembro/2019, onde dizia:
Gostaria de destacar as seguintes faltas ou ausências notadas na proposta publicada:
1.  Uma conexão adequada dos dois lados do aterro, ligando e articulando, principalmente para o pedestre, a ilha do Príncipe ao morro do Quadro e do Alagoano, a avenida Alexandre Buaiz `a avenida Santo Antônio,
2.  Uma proposta de expansão e requalificação do mercado da Vila Rubim, lugar tradicional de abastecimento e sociabilidade dos moradores da cidade de Vitória,
3.  A previsão de implantação de um sistema de transporte coletivo de média capacidade, tipo BRT ou VLT, que conecte o centro de Vitória `a Cariacica e Vila Velha
4.  Um proposta de geração de espaços construídos, para abrigarem edifícios de habitação social, serviços públicos e privados, comércios e instalação de novos negócios,
5.  E finalmente uma
qualificação paisagística  e ambiental através da implantação de um parque linear, que ligue o mercado da Vila Rubim `a rodoviária e ao parque Tancredo Neves.”
Cabe ao Governo do Estado estabelecer um debate amplo, da oportunidade e qualidade deste projeto, e que possa contribuir positivamente para a sua revisão, vinculada os novos desejos e necessidades da Grande Vitória.

Kleber Frizzera
maio 2020