terça-feira, 22 de setembro de 2020

Pertencimento urbano

 


Pertencimento urbano

ou a vitória dos bárbaros

Digo o nome da cidade

- Digo para ver

Sophia Andresen

 

Alguns autores afirmam que a cidade de Vitória e’ um lugar de forasteiros, oriundos do interior, de outros estados vizinhos, Rj, Mg e Ba, que não compartilham um pertencimento com o mundo local, com as suas histórias, paisagens, culturas, enfim, não se identificam com seu patrimônio imaterial ou natural e construído, com os seus valores e a sua preservação.

Nômades, descomprometidos com os ambientes que vivem, seriam como Atila, rei dos hunos, que comandou o saque e destruição de Roma Antiga, bárbaro, incapaz de reconhecer os valores estéticos e artísticos da capital do decadente império.

Se isto for correto, pouco importa aos nossos bárbaros contemporâneos deixar abandonada a cidade histórica, fortificando-se em seus condomínios e compartilhando pouco interesse pelos lugares naturais e artificiais, que compõem ou compuseram, antes dos estragos seculares, o ambiente metropolitano.

Como indícios, poderíamos anotar o descaso pelo centro de Vitória, a ocupação predatória do planalto de Carapina e do litoral de Vila Velha, sem falar na obsessão pelo alargamento das vias, como a cidade fosse um churrasco de picanha, algo a ser retalhado na mesa de um açougueiro, ou de um coronel.

Embora os sintomas sejam muitos e evidentes, tendo a achar que outras causas contribuem para estes comportamentos, tão extensos e generalizados:

1.            A desqualificação das coisas do estado e da cidade diante das metrópoles nacionais, principalmente o Rio de Janeiro, desde o futebol `as manifestações artísticas e intelectuais,

2.            A ideologia da propriedade privada colocando a sua proteção e segurança como um bem supremo, acima de qualquer interesse público,

3.            O baixo nível de produção, oferta e consumo de bens culturais e uma desvalorização ou desconhecimento dos produtos artísticos locais,

4.            O forte preconceito racial, dirigido contra negros, índios e caiçaras e `as suas manifestações e práticas sociais, artísticas e culturais,

5.            O perfil religioso conservador, moralista, o comportamento machista misógino, adicionado uma grande rejeição de modos de vida não convencionais,

6.            O progresso e o desenvolvimento econômico entendido como uma vitória, obtida pela exploração e transformação, uma conquista contra a natureza.

E dai’?

Mapas, desenhos e romances, textos descritivos de lugares, de viagens e eventos, foram ferramentas que a partir do século XVIII, contribuíram para a formação simbólica dos estados nações, delimitando e valorizando recortes geográficos e culturais, molduras que deram forma a um território partilhado. Somados ao uso de uma única língua, uma única história e a subordinação a um único poder, estas narrativas fixaram e definiram um povo, um país, uma identidade.

No processo de globalização, nações foram desfazendo suas particularidades, submetidas `as lógicas econômicas e simbólicas dos mercados internacionais, e gerando, em oposição, movimentos de resistências `as migrações e invocando o retorno de práticas tradicionais.

Com estas transformações mundiais, também cresceram iniciativas de autonomias regionais, que tentam reconfigurar fronteiras julgadas artificiais, pretensas causas da perda de importância econômica e política de um dado território.

Cidades e metrópoles, em todo o mundo, têm investido em inventar suas identidades próprias, que explorem e destaquem as suas capacidades tecnológicas, intelectuais e posições geográficas, visando disputar posições de destaque e importância na acirrada competição econômica internacional.

No Espírito Santo, um discurso semelhante, o capixabismo, que soma uma pitada do ressentimento, um preconceito com os migrantes baianos a uma pretensão de sermos capazes de um desenvolvimento autóctone, foi estimulado por mais de um governo estadual, não conseguiu emplacar e atrair muitos seguidores.

A quase metrópole Grande Vitória, com sua crescente dispersão geográfica e populacional e uma rígida segregação social e funcional, não estimula ações colaborativas, e coloca, em dúvida, a capacidade política de agregar esforços e articulações, somando contínuos fracassos `as seguidas tentativas de um planejamento e intervenções regionais.

Mas não seria a ausência de uma identidade ou uma lealdade metropolitana, as fontes determinantes deste impedimento, e quando somadas `a perda de uma centralidade, os motivos que impedem soldar, sobre as diferenças sociais e econômicas, uma potencialidade criativa de uma vida social, política e cultural partilhada?

O Espírito Santo e a cidade de Vitória não possuem um único museu ou memorial que preserve, resgate ou divulgue a história da sua ocupação e de suas transformações. Em alguns municípios  restam algumas casas que expõem objetos antigos, na sua maioria laudatórios da imigração estrangeira, europeia.

Índios, pobres e negros, exceto no Mucane, não fazem partes destas comemorações.

Pesquisas acadêmicas, movimentos e organizações sociais, em vários momentos, estudam, valorizam e intentam proteger monumentos e bens imateriais, mas além da nossa dupla, panela e moqueca, utilizadas por todas as camadas sociais para alimentar uma identidade capixaba, continuamos a conviver com o lamento de uma perda anunciada. E não chorada por muitos.

Outros ditam, por décadas, ser a atividade turística  a flama que uniria a economia à valorização e proteção dos ambientes históricos e naturais, e continuam aguardando que estrangeiros reconheçam o que não respeitamos

Estaremos condenados, sem identidade, a nos manter periféricos, exportando sonhos e jovens capacitados, remoendo fracassos e projetos abortados, sobrevivendo, em pequenos desejos, `a dura realidade da desigualdade, que separa, a prepotência, que manipula, a individualidade, que egoísta, incapaz da solidariedade e da cooperação, se distrai no consumo e na acumulação?

 

Kleber Frizzera

Setembro 2020