segunda-feira, 27 de julho de 2020

Ruínas futuras

Dizei-me, pedras, respondei-me, altos palácios!
Falai-me ruas! Génio, manifesta-te!
Tudo está vivo em teus sagrados muros, Roma
eterna – é frente a mim só que se cala?
Alguém revele-me a janela à qual verei
a bela cujo fogo me refresque
e a rota em que, a caminho dela ou regressando,
hei sempre de perder horas preciosas!
Visito ainda pilar, palácio, igreja e ruínas,
sisudo como quem viaja a sério.
Mas não por muito; haverá logo um templo apenas
– Templo de Amor –aberto ao iniciado.
Roma, és um mundo, sim; mas, sem amor, nem mesmo
seria mundo o mundo; ou Roma, Roma.
Johann Wolfgang von Goethe

Tradução Nelson Ascher

Há séculos, viajantes se comovem diante das ruínas de edifícios e cidades, sobras de civilizações desaparecidas, restos dos impérios orientais, culturas africanas e pré-colombianas, cobertas pelas florestas, soterradas, investigam suas origens e seus fins, tentam recuperar as suas falas e histórias. Fotos e desenhos representam poetas e cientistas, pensativos, ao lado de colunas e blocos esculpidos, em tentativa de ter um diálogo com as pedras mudas.

Engajados, em tempos modernos, pelo desenvolvimento econômico, pelo crescimento contínuo, a revisão arqueológica dos objetos e lugares degradados, entendíamos, iria decifrar em suas inscrições, os erros e acertos de uma sociedade. Restaurar as marcas e formas, os sentidos e os indícios de outros desejos, nos capacitariam a reforçar nossas identidades ou nos alertariam dos riscos de incertos futuros.

Em tempos de Coronavirus, quando a economia e o futuro se desfazem, as cidades e 0s seus eventos se dissolvem diante da contaminação e do medo, quando as coisas se deterioram, física e simbolicamente, como se relacionar com as novas ruínas geradas pela pandemia?

Estas recentes sobras, tão próximas, frutos dos recentes acontecimentos e de fracassos coletivos, conteriam, como nos antigos restos, os anúncios capazes de contribuir à crítica do presente e à antecipação do futuro?

Estariam, contíguos, em tempo e espaço, para garimpo em cova rasa, expondo visíveis os seus potenciais desperdiçados, derrotados, e agora dispostos a uma outra condição e organização?

No prologo de seu livro Echar a perder: Uma analisis del deterioro, publicado postumamente, 1990, o professor Kevin Lynch, conhecido pelos seus livros Imagem da cidade e Boa forma da cidade, que ate’ hoje influenciam o ensino e a prática do planejamento urbano, já anunciava:

“Todo cambia, y la muerte es una estrategia para mantener los patrones biológicos ante la acción del cambio. Somos seres conscientes, …capacitados para reconocer la estabilidad, la separación y los cambios repentinos. Por ello, consideramos la muerte y casi todos los cambios trágicos y confusos.

Tememos la muerte; tememos la pérdida; tememos el derroche, señal de la pérdida. El peor cambio es la decadencia, la degradación, el hacernos viejos. La degradación es una impureza que hay que evitar o suprimir. Las cosas deben ser limpias y permanentes;… deberían crecer continuamente en capacidad y poder. Pero la permanencia y el crecimiento plantean un dilema, ya que la permanencia es estancamiento y el crecimiento inestabilidad.”

A partir da análise da degradação física/ ambiental nas sociedades humanas, identificando o incomodo da sua presença nos processos sociais da produção de paisagens, cidades e edifícios, tornados abandonados em desperdícios cotidianos, Kevin Lynch define e explora suas diferenças, arrisca a sua filosofia da degradação positiva:.”debemos aprender a pensar positiva y creativamente sobre la degradación, porque es una parte essencial de la vida .y del crecimiento; debemos aprender a degradar bien y a disfrutar con ello.”

Mas será possível e instrutivo este convívio criativo, proposto, por Lynch, com as ruínas antiga, para o seu desfrute e gozo positivo nos intervalos de nossas ocupações atuais e desgostos diários?

Acampariam, atualmente, em suas partes e troços mais recentes, como de outros tempos, novas e impressionantes potenciais invenções e mudanças?

No início do século XV, a cidade de Roma, que no apogeu do império abrigou mais de um milhão de pessoas, tinha sido reduzida a 50.000 moradores e o gado pastava entre a suas lembranças e objetos abandonados. Neste mesmo século, o Renascimento artístico e cultural, em Florença e Roma, ultrapassada a pandemia da peste negra, iria transformar a Itália, a Europa e o mundo ocidental.

Entre os eventuais resultados da atual epidemia, se destaca a dispersão urbana no território, associada a uma redução da fertilidade feminina e estagnação ou diminuição da população em muitos países, inclusive no Brasil. Assim, não será extraordinário supor que muitos ambientes sejam abandonados totalmente ou em parte, restando, nas cidades, espaços em degradação, muitos sem condições de possíveis renovações ou restaurações, para novas utilizações ou encantos. Do mesmo modo, fábricas, minerações, obras portuárias e plantações, perdidos ou reduzidos seus resultados produtivos, acompanhariam estas decadências, aprofundando ou provocando o esvaziamento econômico, social e populacional de uma região.

Com a multiplicação destes objetos degradados, muitos são deixados abandonados, um monte de lixo, a serem demolidos, saqueados ou simplesmente deixados em cinzas pela ações do tempo e das intempéries.

No decorrer da história, o crescimento populacional e a globalização econômica retomaram muitos destes lugares para o uso humano, resinificaram os seus sentidos, adquirindo o estatuto de patrimônio cultural, artístico e histórico da humanidade. No mundo capitalista, este esforço, aceito e compartilhado, pragmático, de um lado contribuiu para lhes fornecer e/ou devolver um valor mercantil, e de outro tenta enganar ou disfarçar as marcas de suas finitudes, morte e extinção.

Incapazes em conviver com estes testemunhos zumbis da fatal condição humana, lamentamos as degradações, o esvanecimento das marcas das múltiplas vidas sobre suas paredes e vazios, nos assustam os fantasmas, espíritos e espectros, que persistem, entrevistos pelos vãos das janelas, transparentes ao olhar comum e `as perdas acumuladas .

Nos esforçamos em recompor formas e matérias desfeitas, alisar cicatrizes e feridas, restaurar renovar falas/ narrativas, recordar eventos suprimidos, erguendo museus para a visitação distraída de turistas e nostálgicos  moradores. Mas muitos objetos resistem a esta vontade, superpostos acúmulos, mascarando particularidades, misturando registros e fatos, em uma amalgama sem estrutura definida ou referência, e “a cada trabalho de luto, cada simbolização de uma catástrofe deixa algo de fora e assim abre um caminho para uma nova catástrofe”, escreve Zizek.

Caberia deixá-los, à vontade, ao pó inicial retornarem, ou quando em pedras brutas, abandoná-los a desgastarem os riscos e marcas, fazendo no limite, um horizonte deserto de imagens e palavras?

Poderíamos, em fim, caminhar, flanar suaves entre seus desperdiçados sonhos, aninhar nossas esperanças entre os seus acontecimentos vencidos, ouvir, de leve, nas brisas marinhas, os encantos e brilhos destas vozes longínquas.

Kleber Frizzera

Julho 2020