terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Sempre

 

 

Sempre acontece, o mesmo, o gosto azedo, o cheiro doce, o toque fresco, o som em fúria, acordam cedo

o travesseiro, suado, impressas marcas, vincos, os fios de cabelo, a mancha do vinho, e sim;

quente mais um dia, o sol invade, a agenda antecipa,

o estomago, a laringe e o coração.

 

A ladeira desce para a cidade,

Aos ventos brisas cheiros marítimos, carros em turbilhão,

no elevador, nas ruas e na contramão,

pedestres caminham e sombras no chão.

 

Peles morenas anunciam desejos remotos, palavras vãs, gestos

deslocam os ganhos intermitentes, gastos e gostos de proximidades de Natal.

 

 

Novembro 2020

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Pertencimento urbano

 


Pertencimento urbano

ou a vitória dos bárbaros

Digo o nome da cidade

- Digo para ver

Sophia Andresen

 

Alguns autores afirmam que a cidade de Vitória e’ um lugar de forasteiros, oriundos do interior, de outros estados vizinhos, Rj, Mg e Ba, que não compartilham um pertencimento com o mundo local, com as suas histórias, paisagens, culturas, enfim, não se identificam com seu patrimônio imaterial ou natural e construído, com os seus valores e a sua preservação.

Nômades, descomprometidos com os ambientes que vivem, seriam como Atila, rei dos hunos, que comandou o saque e destruição de Roma Antiga, bárbaro, incapaz de reconhecer os valores estéticos e artísticos da capital do decadente império.

Se isto for correto, pouco importa aos nossos bárbaros contemporâneos deixar abandonada a cidade histórica, fortificando-se em seus condomínios e compartilhando pouco interesse pelos lugares naturais e artificiais, que compõem ou compuseram, antes dos estragos seculares, o ambiente metropolitano.

Como indícios, poderíamos anotar o descaso pelo centro de Vitória, a ocupação predatória do planalto de Carapina e do litoral de Vila Velha, sem falar na obsessão pelo alargamento das vias, como a cidade fosse um churrasco de picanha, algo a ser retalhado na mesa de um açougueiro, ou de um coronel.

Embora os sintomas sejam muitos e evidentes, tendo a achar que outras causas contribuem para estes comportamentos, tão extensos e generalizados:

1.            A desqualificação das coisas do estado e da cidade diante das metrópoles nacionais, principalmente o Rio de Janeiro, desde o futebol `as manifestações artísticas e intelectuais,

2.            A ideologia da propriedade privada colocando a sua proteção e segurança como um bem supremo, acima de qualquer interesse público,

3.            O baixo nível de produção, oferta e consumo de bens culturais e uma desvalorização ou desconhecimento dos produtos artísticos locais,

4.            O forte preconceito racial, dirigido contra negros, índios e caiçaras e `as suas manifestações e práticas sociais, artísticas e culturais,

5.            O perfil religioso conservador, moralista, o comportamento machista misógino, adicionado uma grande rejeição de modos de vida não convencionais,

6.            O progresso e o desenvolvimento econômico entendido como uma vitória, obtida pela exploração e transformação, uma conquista contra a natureza.

E dai’?

Mapas, desenhos e romances, textos descritivos de lugares, de viagens e eventos, foram ferramentas que a partir do século XVIII, contribuíram para a formação simbólica dos estados nações, delimitando e valorizando recortes geográficos e culturais, molduras que deram forma a um território partilhado. Somados ao uso de uma única língua, uma única história e a subordinação a um único poder, estas narrativas fixaram e definiram um povo, um país, uma identidade.

No processo de globalização, nações foram desfazendo suas particularidades, submetidas `as lógicas econômicas e simbólicas dos mercados internacionais, e gerando, em oposição, movimentos de resistências `as migrações e invocando o retorno de práticas tradicionais.

Com estas transformações mundiais, também cresceram iniciativas de autonomias regionais, que tentam reconfigurar fronteiras julgadas artificiais, pretensas causas da perda de importância econômica e política de um dado território.

Cidades e metrópoles, em todo o mundo, têm investido em inventar suas identidades próprias, que explorem e destaquem as suas capacidades tecnológicas, intelectuais e posições geográficas, visando disputar posições de destaque e importância na acirrada competição econômica internacional.

No Espírito Santo, um discurso semelhante, o capixabismo, que soma uma pitada do ressentimento, um preconceito com os migrantes baianos a uma pretensão de sermos capazes de um desenvolvimento autóctone, foi estimulado por mais de um governo estadual, não conseguiu emplacar e atrair muitos seguidores.

A quase metrópole Grande Vitória, com sua crescente dispersão geográfica e populacional e uma rígida segregação social e funcional, não estimula ações colaborativas, e coloca, em dúvida, a capacidade política de agregar esforços e articulações, somando contínuos fracassos `as seguidas tentativas de um planejamento e intervenções regionais.

Mas não seria a ausência de uma identidade ou uma lealdade metropolitana, as fontes determinantes deste impedimento, e quando somadas `a perda de uma centralidade, os motivos que impedem soldar, sobre as diferenças sociais e econômicas, uma potencialidade criativa de uma vida social, política e cultural partilhada?

O Espírito Santo e a cidade de Vitória não possuem um único museu ou memorial que preserve, resgate ou divulgue a história da sua ocupação e de suas transformações. Em alguns municípios  restam algumas casas que expõem objetos antigos, na sua maioria laudatórios da imigração estrangeira, europeia.

Índios, pobres e negros, exceto no Mucane, não fazem partes destas comemorações.

Pesquisas acadêmicas, movimentos e organizações sociais, em vários momentos, estudam, valorizam e intentam proteger monumentos e bens imateriais, mas além da nossa dupla, panela e moqueca, utilizadas por todas as camadas sociais para alimentar uma identidade capixaba, continuamos a conviver com o lamento de uma perda anunciada. E não chorada por muitos.

Outros ditam, por décadas, ser a atividade turística  a flama que uniria a economia à valorização e proteção dos ambientes históricos e naturais, e continuam aguardando que estrangeiros reconheçam o que não respeitamos

Estaremos condenados, sem identidade, a nos manter periféricos, exportando sonhos e jovens capacitados, remoendo fracassos e projetos abortados, sobrevivendo, em pequenos desejos, `a dura realidade da desigualdade, que separa, a prepotência, que manipula, a individualidade, que egoísta, incapaz da solidariedade e da cooperação, se distrai no consumo e na acumulação?

 

Kleber Frizzera

Setembro 2020

 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

armazens do ibc

Os armazéns do IBC


O extraordinário do cotidiano e’ superar o próprio cotidiano

Henri Lebfreve

 

Um poeta alemão, no século XIX, nos alertou:

Onde mora o perigo, também mora a salvação.

As cidades, suas construções, bairros, eventos e pessoas, se transformam com o tempo. Vitória e Jardim da Penha não são diferentes. Frutos, seus desenvolvimentos, nos últimos cinquenta anos, da expansão do projeto industrial/ portuário de Tubarão, da instalação da UFES, e deslocamento da população para o continente, encontram-se, agora, cidade e bairro, em um impasse, em um limite, diante do covid 19, mas também das conjunturas sociais e econômicas, que se alteraram profundamente nos últimos anos.

De um lado, o bairro não mais recebe um excedente de população, jovem e migrante, que lhe injetou, durante décadas, animação, vida coletiva e modernidade, e antes, percebe-se um consequente envelhecimento populacional.

De outro lado, a inevitável redução da importância do projeto exportador impõe `a cidade e aos seus moradores, um esforço de invenção de um projeto alternativo econômico, que garanta e seja o suporte de um futuro próspero, com uma necessária distribuição efetiva da riqueza e dos acessos aos bens públicos.

O que isto tem a ver com os galpões do IBC?

Erguido a mais de cinquenta anos para abrigar o estoque regulador do café’, com o tempo foi perdendo a sua função original, restando, semi ocupado, imenso obstáculo no centro do bairro, uma sequência de muros reservando, no interior, um passado esgotado, uma imensa caixa vazia.

Nos momentos de grande aflição e riscos coletivos, como vivemos agora, uma pandemia mundial que não respeita fronteiras e limites, brilham possibilidades de renovação e salvação.

Mas também, aumentam os riscos do atraso, da expansão do conservadorismo, da ignorância e dos preconceitos sociais e raciais.

Estamos diante destes perigos e potencialidades,

O debate e a decisão acerca de novos usos dos galpões, trata-se de uma destas potencialidades. Uma área de mais de 30.000 m2, central ao bairro e de acesso fácil às avenidas, que articulam a metrópole norte. Uma oportunidade excepcional para a cidade, para uma renovação de Jardim da Penha e para o futuro de nossas crianças e jovens.

Não podemos entregar esta chance `a decisão dos interesses do governo federal, da gula do mercado imobiliário, que ainda não se aperceberam dos novos tempos pós pandemia, e não compreendem as novas demandas urbanas emergentes.

Cabe a nós, moradores, da cidade e do bairro, trabalhadores, estudantes e frequentadores de suas ruas, principalmente os mais jovens, atrevermos a pensar, propor e decidir mais nobres utilizações para a área, através de um amplo debate democrático.

 

Um projeto cultural

Não é por acaso, ou por desconhecimento, que a palavra cultura e a consequente instalação de um local adequado para a sua produção e usufruto, destacando a sua importância e valor, seja a primeira a ser lembrada no atual debate. Mesmo aos mais resistentes, está claro que qualquer projeto de futuro, passa pela produção coletiva do saber imaterial, das ciências, das tecnologias e das artes, através da inovação criativa, forma de participar ativamente em um mundo em permanentemente mudança.

Cultura, neste caso, não se restringe às atividades artísticas, mas se refere a todas as práticas sociais, vividas na vida privada ou comum, no aprendizado contínuo, na pesquisa, básica e aplicada, na criação de novos procedimentos e aplicativos, na descoberta de conteúdos informativos ou significados artísticos, para uma apropriação e uso público, e que promovam uma economia de bens simbólicos, inclusiva e sustentável.

Como um produto coletivo, a produção cultural deve abrigar os mais diferentes modos de representação e significação, de classe, gênero, raça ou sexo, deve servir para dar visibilidade e presença `as minorias e `as parcelas excluídas da sociedade, como parte da redução das desigualdades urbanas e econômicas.

A proximidade da UFES, o interesse do IFES e da Secretaria de Cultura do Estado, e principalmente, as movimentações da população de Jardim da Penha, já’ garantem o impulso inicial partida deste debate, e, tenho algumas propostas, baseadas nos seguintes princípios e objetivos:

Centro de produção cultural

Objetivos gerais

Agregar/ articular/ aproximar atividades múltiplas de aprendizado, conhecimento e produção de conteúdos e fruição de experiências artísticas, cientificas, esportivas e culturais, a partir dos seguintes princípios:

1.            Um lugar feito para aproximar pessoas/ ideias/ informações, um local de troca de afetos, contatos e conhecimentos.

2.           Um lugar de produção e consumo de inovações, onde se agreguem moradias temporárias, um local de pontos múltiplos de sociabilidade.

3.           Um lugar permeável, onde se instale a diversidade, diferenças, um local dos conflitos e da negociação, entre o bairro, a metrópole e o mundo.

E com o seguinte programa mínimo de atividades:

1.            Moradias temporárias/

Que possa abrigar residências artísticas/ estudantes/ para manter uma movimentação constante de pessoas jovens.

2.           Oficinas de formação/ aperfeiçoamento e treinamento-

Instalação de um centro de extensão universitária/ Ufes/ Ifes/Secult

3.           Locais de apresentação/ fruição artística-

Equipamentos culturais. teatro/ auditório/ salas de exposições/ cinema, etc.

4.           Praça pública/ de encontros/ de manifestações/

Feira livre/ feirinhas semanais e festas comunitárias

5.           Comércio e serviços locais-

Para a instalação de pequenas lojas/ escritórios, bares e restaurantes, artesanato, etc.

6.           Biblioteca, arquivo, e museu histórico-

Que guarde e proteja as memórias de imagens e sons da cidade de Vitoria/ Jardim da Penha

7.            Centro de apoio e instalação a novos negócios/ Para as start ups tecnológicas/ artísticas/ sociais

8.           Instalações exercícios físicos-

Tais como academia/ piscina/quadra/etc.

Para o bom funcionamento do centro,  propomos uma

Administração e gestão colegiada,

Com a participação de:

1.            Moradores Jardim da penha/ Cidade

2.           Prefeitura

3.           Secult/ governo do Estado/Ifes/Ufes

4.           Produtores culturais/ científicos

 

Os tempos de pandemia nos cobram ousadias, nos exigem desejos, nos alimentam de esperança de melhores dias.

A ocupação criativa do galpões do IBC e’ uma aposta que precisamos fazer.

 

Kleber Frizzera

Julho/2020

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Ruínas futuras

Dizei-me, pedras, respondei-me, altos palácios!
Falai-me ruas! Génio, manifesta-te!
Tudo está vivo em teus sagrados muros, Roma
eterna – é frente a mim só que se cala?
Alguém revele-me a janela à qual verei
a bela cujo fogo me refresque
e a rota em que, a caminho dela ou regressando,
hei sempre de perder horas preciosas!
Visito ainda pilar, palácio, igreja e ruínas,
sisudo como quem viaja a sério.
Mas não por muito; haverá logo um templo apenas
– Templo de Amor –aberto ao iniciado.
Roma, és um mundo, sim; mas, sem amor, nem mesmo
seria mundo o mundo; ou Roma, Roma.
Johann Wolfgang von Goethe

Tradução Nelson Ascher

Há séculos, viajantes se comovem diante das ruínas de edifícios e cidades, sobras de civilizações desaparecidas, restos dos impérios orientais, culturas africanas e pré-colombianas, cobertas pelas florestas, soterradas, investigam suas origens e seus fins, tentam recuperar as suas falas e histórias. Fotos e desenhos representam poetas e cientistas, pensativos, ao lado de colunas e blocos esculpidos, em tentativa de ter um diálogo com as pedras mudas.

Engajados, em tempos modernos, pelo desenvolvimento econômico, pelo crescimento contínuo, a revisão arqueológica dos objetos e lugares degradados, entendíamos, iria decifrar em suas inscrições, os erros e acertos de uma sociedade. Restaurar as marcas e formas, os sentidos e os indícios de outros desejos, nos capacitariam a reforçar nossas identidades ou nos alertariam dos riscos de incertos futuros.

Em tempos de Coronavirus, quando a economia e o futuro se desfazem, as cidades e 0s seus eventos se dissolvem diante da contaminação e do medo, quando as coisas se deterioram, física e simbolicamente, como se relacionar com as novas ruínas geradas pela pandemia?

Estas recentes sobras, tão próximas, frutos dos recentes acontecimentos e de fracassos coletivos, conteriam, como nos antigos restos, os anúncios capazes de contribuir à crítica do presente e à antecipação do futuro?

Estariam, contíguos, em tempo e espaço, para garimpo em cova rasa, expondo visíveis os seus potenciais desperdiçados, derrotados, e agora dispostos a uma outra condição e organização?

No prologo de seu livro Echar a perder: Uma analisis del deterioro, publicado postumamente, 1990, o professor Kevin Lynch, conhecido pelos seus livros Imagem da cidade e Boa forma da cidade, que ate’ hoje influenciam o ensino e a prática do planejamento urbano, já anunciava:

“Todo cambia, y la muerte es una estrategia para mantener los patrones biológicos ante la acción del cambio. Somos seres conscientes, …capacitados para reconocer la estabilidad, la separación y los cambios repentinos. Por ello, consideramos la muerte y casi todos los cambios trágicos y confusos.

Tememos la muerte; tememos la pérdida; tememos el derroche, señal de la pérdida. El peor cambio es la decadencia, la degradación, el hacernos viejos. La degradación es una impureza que hay que evitar o suprimir. Las cosas deben ser limpias y permanentes;… deberían crecer continuamente en capacidad y poder. Pero la permanencia y el crecimiento plantean un dilema, ya que la permanencia es estancamiento y el crecimiento inestabilidad.”

A partir da análise da degradação física/ ambiental nas sociedades humanas, identificando o incomodo da sua presença nos processos sociais da produção de paisagens, cidades e edifícios, tornados abandonados em desperdícios cotidianos, Kevin Lynch define e explora suas diferenças, arrisca a sua filosofia da degradação positiva:.”debemos aprender a pensar positiva y creativamente sobre la degradación, porque es una parte essencial de la vida .y del crecimiento; debemos aprender a degradar bien y a disfrutar con ello.”

Mas será possível e instrutivo este convívio criativo, proposto, por Lynch, com as ruínas antiga, para o seu desfrute e gozo positivo nos intervalos de nossas ocupações atuais e desgostos diários?

Acampariam, atualmente, em suas partes e troços mais recentes, como de outros tempos, novas e impressionantes potenciais invenções e mudanças?

No início do século XV, a cidade de Roma, que no apogeu do império abrigou mais de um milhão de pessoas, tinha sido reduzida a 50.000 moradores e o gado pastava entre a suas lembranças e objetos abandonados. Neste mesmo século, o Renascimento artístico e cultural, em Florença e Roma, ultrapassada a pandemia da peste negra, iria transformar a Itália, a Europa e o mundo ocidental.

Entre os eventuais resultados da atual epidemia, se destaca a dispersão urbana no território, associada a uma redução da fertilidade feminina e estagnação ou diminuição da população em muitos países, inclusive no Brasil. Assim, não será extraordinário supor que muitos ambientes sejam abandonados totalmente ou em parte, restando, nas cidades, espaços em degradação, muitos sem condições de possíveis renovações ou restaurações, para novas utilizações ou encantos. Do mesmo modo, fábricas, minerações, obras portuárias e plantações, perdidos ou reduzidos seus resultados produtivos, acompanhariam estas decadências, aprofundando ou provocando o esvaziamento econômico, social e populacional de uma região.

Com a multiplicação destes objetos degradados, muitos são deixados abandonados, um monte de lixo, a serem demolidos, saqueados ou simplesmente deixados em cinzas pela ações do tempo e das intempéries.

No decorrer da história, o crescimento populacional e a globalização econômica retomaram muitos destes lugares para o uso humano, resinificaram os seus sentidos, adquirindo o estatuto de patrimônio cultural, artístico e histórico da humanidade. No mundo capitalista, este esforço, aceito e compartilhado, pragmático, de um lado contribuiu para lhes fornecer e/ou devolver um valor mercantil, e de outro tenta enganar ou disfarçar as marcas de suas finitudes, morte e extinção.

Incapazes em conviver com estes testemunhos zumbis da fatal condição humana, lamentamos as degradações, o esvanecimento das marcas das múltiplas vidas sobre suas paredes e vazios, nos assustam os fantasmas, espíritos e espectros, que persistem, entrevistos pelos vãos das janelas, transparentes ao olhar comum e `as perdas acumuladas .

Nos esforçamos em recompor formas e matérias desfeitas, alisar cicatrizes e feridas, restaurar renovar falas/ narrativas, recordar eventos suprimidos, erguendo museus para a visitação distraída de turistas e nostálgicos  moradores. Mas muitos objetos resistem a esta vontade, superpostos acúmulos, mascarando particularidades, misturando registros e fatos, em uma amalgama sem estrutura definida ou referência, e “a cada trabalho de luto, cada simbolização de uma catástrofe deixa algo de fora e assim abre um caminho para uma nova catástrofe”, escreve Zizek.

Caberia deixá-los, à vontade, ao pó inicial retornarem, ou quando em pedras brutas, abandoná-los a desgastarem os riscos e marcas, fazendo no limite, um horizonte deserto de imagens e palavras?

Poderíamos, em fim, caminhar, flanar suaves entre seus desperdiçados sonhos, aninhar nossas esperanças entre os seus acontecimentos vencidos, ouvir, de leve, nas brisas marinhas, os encantos e brilhos destas vozes longínquas.

Kleber Frizzera

Julho 2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Juntos


Anotações para um possível futuro

 

O centro encarna um espaço comum a todos, socialmente controlado, em que a opinião de cada um, livremente expressa pela palavra no decorrer de um debate geral, e´ posta a disposição de todos..

Surge assim o político, ...E para que seja impossível apropriar -se do poder, coloca-se este no centro.

Espaço e cidade

Jean Pierre Vernant,

 

A pandemia nos apresentou, de surpresa, um futuro imprevisto, de riscos que assustam, ameaçam, que rompem o fato comum e afastam o próximo, tornam distantes os afetos e as amizades, mas estimulam possibilidades do surgimento do novo.

Os ritos públicos, do trabalho, do ensino, das compras, dos extraordinários gostos das festas e entretenimentos, se retraem, contidas as multidões, encapsuladas no campo privado, e tornam virtuais os contatos e as tensas figurações.

Quando voltaremos a estarmos juntos?

Sobreviver a estes desfazimentos incontrolados da vida anterior, dita normal, e pensar em comum o futuro?

Desfeitos os centros históricos, explodidos em múltiplos pontos deslocados pelos territórios metropolitanos, desconexos, fragmentos espaço- temporais que monopolizam alguns usos e segregam as diversidades sociais e culturais, haverá a possibilidade da constituição de uma rede metropolitana que conecte as suas particularidades locais e somem potencialidades isoladas?

Proximidade e distanciamento.

Uma dos impactos da pandemia atual, na experiência urbana, e’ o isolamento social, o controle de gestos diante dos outros, nas aglomerações, nas ruas e ambientes coletivos, afastando-nos dos desconhecidos, e acelerando desconfianças de contatos diretos com amigos e entes queridos.

E’ previsível a redução das festas, shows e espetáculos, onde a concentração e a densidade de pessoas fazem parte dos prazeres dos seus usufrutos, transferidos, em boa parte, para o consumo virtual, de imagens, sons e partilhamentos.

Uma possível expansão dos preconceitos, aos diferentes, `as suas presenças e comportamentos, fortalece, no plano ambiental, bolhas espaciais urbanas, habitadas por grupos homogêneos, semelhantes nos aspectos sociais, culturais e políticos. Estes procedimentos isolacionistas, generalizados no mundo virtual, deverão se espalhar ao mundo concreto, reforçando as crescentes segregações, consolidando um mundo e uma metrópole, feitos de muitas e desconexas partes, aparentemente impossíveis de se agregarem em um sistema comum.

 

Quais serão nestes próximos tempos, os espaços da esperança ?

Corpos e espaços vividos, moldados socialmente, são instrumentos de expressão e manutenção de uma ordem econômica e política, ou podem fornecer disposições à novas práticas livres e autônomas, diante dos choques e das adversidades.

Mas quais as condições concretas para o fornecimento destas disposições?

Poderão as nossas cidades, estratificadas em exclusões físicas e humanas, serem o campo de novos sentidos e modos de vida coletivos, desfrutados em inovadores ordenamentos formais e suportes `as cotidianas necessidades?

Voltemos `a posição crítica dos centros urbanos.

Lugares da palavra e do debate, voltarão a abrigar usos e atividades coletivas, recuperando o papel democrático, locais das disputas e conflitos, locus dos debates e das trocas dos afetos?

Imaginemos duas alternativas.

 

Hipótese 1 Uma rede de centros, diferentes e equivalentes

Nesta alternativa, em um quebra cabeças, um puzzle, remontaremos as peças urbanas desfeitas e lançadas pelo território metropolitano, configurando novas e surpreendentes imagens, a partir de pontos de conexão atuais e ainda incompletos.

A partir da constituição desta potente rede de muitos centros, articulada por múltiplas interligações de pessoas, bens e informações, intempestivas invenções se movimentarão e impulsionarão as produções individuais e coletivas de uma economia local e solidária, de distribuição igualitária.

 

Hipótese 2  Um outro centro/ híbrido

Em uma outra saída, de olho e paixão aos centros históricos atuais, atentos as suas ruínas e seus espectros, iremos reinventá-los, extraindo sentidos e gozos de suas marcas, falas e alusões, das conquistas e decepções anteriores. A compreensão crítica dos eventos passados registrados em edifícios, lugares e práticas, ao reconhecer as perdas e projetos incompletos, poderá fornecer e iluminar ações, gestos, movimentos, revoluções futuras.

Sobre os registros dos anteriores desejos humanos poderemos erguer outros riscos, resignificar velhas construções e escondidos adornos, exercer novos ofícios e partilhar novos amores e sonhos.

 

Exigências mínimas para gerar novas centralidades, condições, físicas e políticas e simbólicas, são preliminares e necessárias a estes esforços:

1.Dotar a metrópole/cidade de um sistema público de mobilidade de pessoas/da circulação de seus desejos e seus corpos, que forneça direitos aos bens comuns e serviços públicos, que amplie a trocas de informações e o acesso aos dados públicos e pessoais.

2. Romper a lógica perversa das desigualdades sociais e econômicas, oferecendo renda universal e acesso universal ao trabalho, saúde, educação e entretenimento a todos os cidadãos.

3. Assumir um compromisso planetário em defesa do meio ambiente, na luta contra o aquecimento global, na direção de uma economia, que preserve os recursos naturais e se realize na criação, produção e consumo responsável e distributivo.

 

Kleber Frizzera

Junho 2020

Publicado em movimentoonline.com.br

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Havia

Naquele tempo não se distinguiam estações, ... 

E mesmo os trovões, os relâmpagos, a chuva, o gelo e o granizo não seguiam o seu curso.

Havia muitos pássaros e caça, mas não havia quem os caçasse.

Havia o que chamamos demônios, mas não podiam opor-se a nada.

Naquele tempo, a felicidade existia, mas não havia ninguém para distingui-la.


in Histo'ria e memo'ria, Jacques le Goff



quarta-feira, 27 de maio de 2020

Horas vazias

 

Horas vazias

O extraordinário do cotidiano e’ superar o próprio cotidiano

Henri Lebfreve

 

Impostos, pela quarentena, ao cotidiano mais comum, igual, repetido, desfeitas as distrações dos movimentos inúteis do dia a dia, da circulação apressada, sem sentido, do ilusório consumo das coisas e dos lugares, frente ao compulsório recorte de nossa casa, assombra-nos, como um fantasma, a profunda banalidade da vida.

Comer, assistir tv, dormir, ...

No dia a dia, o mesmo tempero, a mesma verdura, o mesmo almoço requentado, a mesma pizza pelo telefone, que nos recordam, em ausência, os profundos gostos e sabores da mesa materna, dos cheiros das comidas no calor do fogão de lenha e o suave toque dos cotovelos assentados sobre a lisa mesa de madeira.

Nas telas, a Netflix repete em sequência uma mesma história, em um streaming infinito, com idênticos roteiros de perdas e reconciliações, anuncia uma sequência de séries, de assassinatos, de crimes e punições, de zumbis e amores românticos, de guerras e heróis, repete, na maioria dos filmes, um mesmo fim, feliz.

Nas leitos, o colchão não contém, macio, o mesmo prazer anterior dos acanhados minutos roubados da rotina e do trabalho, o despertador não cobra mais insistente, o esforço de levantar-se apressado, e sobra, `a consciência desperta, um maior número de horas a serem preenchidas, livres, vazias.

Assustados, afastamo-nos, diante do olhar da tela, que não nos reconhece, na ausência dos ruídos da multidão, das presenças das ruas, da ressonância da convivência nas lojas, nas escolas e nos bares.

Contemplamos, preocupados, como a comunicação digital esta’ debilitando o vínculo comunitário, desfazendo o saber corporal e desvanecendo uma memória e uma identidade corpórea, individuais e comuns, que consolidaram práticas, rituais e encenações coletivas.

Mas, o isolamento social está estimulando inusitados pequenos prazeres da vida doméstica, quando o espelho duplica os mesmos lugares, repete conhecidas imagens, e nos ensina, ao ritmo solar de cada dia, outros gestos, mais lentos, apurados, elaborados. Gestos de pequenos afazeres comuns, da limpeza da casa, da feitura da comida, da leitura solitária, do desenho do bordado sem fim, que aguarda o retorno de Ulisses. Gestos silenciosos de afetos e carinhos.

Encerrados em nossa casa, fustigamos outros gostos e interesses, que provocam o desfrute dos prazeres de uma vida cotidiana, o reconhecimento dos sentidos no discreto, no insipido, no banal, quando, escreve Byung-Chul Han, em seu novo recente livro La desaparición de los rituales: Una topología del presente:La repetición descubre una intensidad en lo no excitante, en lo discreto, en lo insípido, faz habitável o tempo, nos permite celebrar o tempo e viver a experiência profunda do simbólico.

Para quem espera sempre o novo, estimulado pelas informações  acumuladas da economia neoliberal, que elimina a duração das emoções, para ampliar o consumo, por cima do que já existe, “El sentido, es decir, el camino, es repetible,..... aunque al mismo tiempo algo me ha dado una alegría al entrarme por el rabillo del ojo (la luz del día o el crepúsculo).

Incluso una puesta de sol es un acontecimiento y, por tal, irrepetible.”, a ser admirado, novidade, em cada fim de tarde.

Para Han, o capitalismo não gosta da calma, tenta impor, aos corpos e aos espíritos, o ritmo acelerado do trabalho alienado, acelera a comunicação digital e o home office, onde não há mais repouso, onde não há mais sossego, onde não há mais intervalos, onde não há’ mais silêncios. Pressionados incessantemente a produzir, a “vida fica totalmente degradada, profanada”.

Na pós pandemia será’ urgente preciso renovar os tempos da festa, da celebração do sublime, o tempo da poesia, diz Franco Berardi, como “ o ato de fazer experiência com o mundo pelo embaralhamento dos padrões semióticos”, que pode mostrar um espaço de sentido que não preexiste na natureza, e que não tendo como fundamento a convenção social, vai além dos limites da linguagem, e “revela uma esfera possível de uma experiência ainda não experimentada”.

Haverá’, para gozo e admiração, uma poesia urbana, de ventos e coisas, palavras e acontecimentos, capaz de revelar indizíveis significados e unir esforços híbridos, em nossas casas e na vida pública das cidades?

 

Kleber Frizzera

Maio 2020

 

Publicado em Movimentoonlin.com.br