quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Experiência e cidade



Segundo Josep Maria Montaner, crítico de arquitetura catalão, a visão feminista de revalorização da experiência  sensorial e corporal das mulheres, ao negar as pretensões machistas e masculinas de imposição de formas e normas de pensamento, de modos de vida e comportamento supostamente universais, resgata uma nova subjetividade própria, nômade, “através da afirmação da complexidade e da diferença, dos afetos e dos desejos, da realidade e da vida cotidiana e trabalho reprodutivo”.

Mas haverá uma singular apropriação feminina a tensionar e transformar os espaços públicos da cidade, quando os seus corpos, tornados livres, suas manifestações gestuais, verbais e de vestimentas rompem os limites do controle simbólico e real dos olhares dominantes? 

O aumento da violência simbólica e física contra os corpos femininos não seria resultado da resistência masculina a essas mudanças?

Vivemos uma sociedade da experiência, que segundo o filósofo Slavoj Zizek, é uma das características definidoras do capitalismo pós-moderno: “A mercantilização direta da nossa experiência, quando o que compramos no mercado é cada vez menos produtos e objetos materiais e cada vez mais experiência de vida, de sexo, de comer, de comunicar, de consumo cultural, de um estilo de vida, ...,consumidores de nossas vidas..” . Em última análise, afirma, “nós compramos o tempo de  nossas vidas”, como um desejo imposto de buscar transformar a nós mesmos em uma obra de arte Premium.
Anúncios de viagens, de restaurantes, carros, das últimas modas, de roupas e adereços, comportamentos e móveis, propagandas de todos os tipos de objetos e serviços, contêm sempre, como plus, essa oferta: o acesso privilegiado a uma experiência corporal única, particular a ser oferecida pelas coisas, pelos alimentos ou lugares turísticos, suas satisfações, prazeres e  lembranças inesquecíveis a serem registradas em fotos, corpos, músculos e espíritos.
Para o filosofo francês Gilles Lipovetsky, a ideia de um marketing sensorial produz como um “reencantamento do mundo, que conduz a viver a cidade [...], como um parque de diversões, que e´ consumido com a paixão e o prazer devidos”, teatralizando e espetacularizando a vida ordinária, e assim, “a cidade gera novas experiências, suscita emoções, cria sensações”. Busca-se uma atmosfera especial, de um contínuo entretenimento, e mais do que nunca, o mundo hipermoderno é “o da estética mercantil e do comércio consumista que invade e reestrutura o espaço urbano e arquitetônico”.
Ao mesmo tempo, a expansão das experiências pessoais propiciadas pela realidade virtual em jogos e viagens, ap, parece fortalecer o individualismo, estimular o prazer solitário e o hedonismo descarnado, em que não mais precisamos nos debater diretamente com a matéria das coisas para o desfrute da vida.
Ao investir na produção de experiências virtuais ou reais, múltiplas, diversificadas e ofertadas a gostos e apreciações individualizados, tendemos a ultrapassar a satisfação imediata de necessidades básicas, biológicas ou sociais, potencializando uma contemplação e um gozo sensível, afetuoso e criativo? 
Ou, ao contrário, nos mantemos subordinados a uma lógica capitalista, inserindo a vida e o afeto humano em um mercado volúvel, masculino, violento e consumista?

Nestas complexas e atuais oposições, a crescente presença feminina nos espaços públicos, ocupando e transformando, de múltiplas formas, com seus corpos e desejos os lugares do mundo, parece romper esta dicotomia, revelando e propondo novas práticas de aprendizado e de convivência sensível e amorosa humana.


Kleber Frizzera
Setembro 2019

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